Não é preciso ser louco, maluco ou lunático para perceber seus muitos eus. Nem é preciso ter complexos de personalidade. Deixe a patologia longe de nossa conversa, não que iremos banalizar nosso diálogo no discurso da normalidade, longe disso, meu objetivo é justamente o contrário nesta vida, estabelecer espaço para o estranho que habita em mim, logo para o estranho que habita em você.
Estranha, desconhecido, outro, não importa o nome que damos para as outras faces de nossas almas, é certo que muitas são as vontades que nos habitam, e muitos são os rótulos com os quais precisamos lidar, colocados por nós ou pelos outros. Já que estamos falando de rótulos, que tal filosofarmos primeiro sobre os que os outros nos dão...
Já notou como é difícil lidar com todas as coisas do mundo, são muitas variáveis. Com isso nosso cérebro busca sempre simplificação. Ele quer repetir caminhos, agrupar definições. Tudo isso para ficar mais fácil encontrar definições e caminhos para situações de perigo. Nosso cérebro de animal frágil, mas sobrevivente, nos ensinou a ter raciocínio rápido. Só que com isso, além das vantagens de nos manter vivos, trará situações não tão boas.
Com essa característica de funcionamento, nosso cérebro irá da mesma forma agrupar e simplificar as coisas do mundo, e logo não será diferente com as pessoas. Elas se tornam um recorte das suas ações e falas, estão sempre no presente da nossa interação, mas sempre no rótulo que nosso cérebro escolheu colocar sobre elas. Logo, quando nos reunimos em sociedade, passamos a observar esses rótulos, e a ver quais que nos parecem ter mais ou menos sucesso. E, mais uma vez, nosso cérebro busca caminhos mais fáceis e tenta nos adaptar a nossa própria essência aos rótulos que mais nos agradam. E é aí que começam os perigos! Não quero falar de todos aqui, mas um deles vale destacar, como a potencialidade de sucesso nessa observação que fazemos dentro da simplificação dos rótulos dos outros, passamos a buscar cada vez um menor número de atribuições para que tenhamos controle sobre como os outros nos vêem. E passamos a projetar essa preocupação também sobre as outras pessoas.
Quando eu espero que você tenha uma linha simples em sua vida, focada e especializada, quero poder compreender o que você é ou faz. E isso para que eu possa sobrepor a minha trajetória e verificar se meus rótulos estão adequados. É vivemos em uma sociedade de verticalização, queremos nos posicionar como superiores ou inferiores, na busca da atenção e do carinho que virtualizamos demais (assunto tb para o futuro).
Só que muitas vezes nos deparamos com pessoas que não tem rótulos simples. Elas fazem mais de uma coisa ao mesmo tempo. A imagem do homem banda sempre me vem a cabeça quando evocam essa característica. Só que essa imagem precisa ser requalificada. E sabe qual o maior problema de tudo isso? É que quando tentamos sobrepor a vida do homem banda à vida do guitarrista, do baterista, pensamos que ele é médio em todos os instrumentos, enquanto os outros são especialistas, são melhores. Você perguntou para o homem banda qual o propósito ele tinha quando decidiu montar uma banda de um? É muito provável que ele não queira ser especialista em um destes instrumentos, e que ficaria muito feliz se aparecesse um especialista para tocar com ele. Homens banda tem vocação para maestro. E aí que entra nosso assunto.
Quando passamos a perceber e a dar vida a nossa complexidade, quando realmente nos complexificamos, aumentando nossas áreas de estudo, buscando experiências múltiplas e realmente nos multiplicando é que começamos a entender a maestria da vida. A linha reta te permite chegar mais rápido, com certeza, mas a curva do múltiplo permite que ele conheça o terreno de forma mais ampla.
Muitos dirão que os muitos eus dentro de nós são falta de foco, outros de potencial desperdiçado. Claro que há parte verdade nessa afirmação, assim como há parte verdade quando aplicada aos especialistas, em profissão e em ser apenas uma única versão de si mesmos. Contudo, ser múltiplo, ser divergente não é ser desfocado, ser desfocado que é ser desfocado. Quando a gente aprende a alimentar nossos muitos eus, a experimentar. O foco está em ser, em viver, em aproveitar o mundo, e normalmente em um atributo maior da realidade. Vivemos por projetos, por experiências, por desenvolver os outros, por concretizar elementos complexos. E isso não significa que a gente queira fazer tudo sozinho, pode chegar, se conseguir manter o ritmo, ficar. E vamos fazer um mundo muito melhor, cheio de eus complexos e experimentados da vida.